Académico desafia PR a instaurar inquérito sobre mortes na manifestação do dia 24 de Outubro
“O Vosso silêncio é inquietante”
Senhor Presidente da República,
A Paz de Cristo esteja convosco!
I. O Vosso silêncio perante a informação da morte de manifestantes no dia 24 de Outubro é chocante
Antes de tudo o mais, Excelência, é chocante o Vosso silêncio perante a informação segundo a qual duas pessoas terão perdido a vida na manifestação reprimida no dia 24 de Outubro do ano em curso, em Luanda, por responsabilidade de agentes da Polícia Nacional. No mínimo, deveria, Vossa Excelência, mandar instaurar um inquérito para apurar a veracidade de tal ocorrência.
II. O Estado de direito pressupõe o exercício dos poderes públicos com base na Constituição e na lei.
Segundo Gomes Canotilho “a ideia nuclear do Estado de direito” é a “sujeição do poder a princípios e regras jurídicas –, garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade perante a lei e segurança” (2003: 231).
III. A Constituição autoriza apenas a limitação ou suspensão de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos na declaração de estado de emergência, na declaração de estado de guerra e na declaração de estado de sítio.
A Constituição da República de Angola (CRA) autoriza apenas que os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos sejam limitados ou suspensos através de três tipos de declarações: (1) a declaração do estado de guerra (2) a declaração do estado de sítio e (3) a declaração do estado de emergência: “O exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitado ou suspenso em caso de estado de guerra, de estado de sítio ou de estado de emergência, nos termos da Constituição e da lei” (art. 58.°/1 e também /2 da CRA).
IV. Vossa Excelência agride a Constituição ao limitar (ou suspender) a liberdade de reunião e de manifestação na declaração de situação de calamidade pública.
Ao limitar ou suspender direitos, liberdades e garantias dos cidadãos dentro da decretação da “declaração da situação de calamidade pública”, Vossa Excelência agride a Constituição, porque só pode fazê-lo através de uma das três declarações supracitadas, quais sejam, (1) a declaração do estado de guerra (2) a declaração do estado de sítio e (3) a declaração do estado de emergência. A agressão praticada por Vossa Excelência constitui uma inconstitucionalidade formal.
Gomes Canotilho (2003) doutrina que “os vícios formais […] incidem sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização […] viciado é o acto, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final” (p. 959). Foi através da forma declaração da situação de calamidade pública que, Vossa Excelência, limitou e/ou suspendeu a liberdade de reunião e de manifestação.
Segundo a CRA, o Presidente da República de Angola não pode, pois, limitar ou suspender direitos, liberdade e garantias dos cidadãos dentro de uma declaração de situação de calamidade pública, por não ser a forma constitucionalmente prescrita para o efeito.
A Constituição sanciona como inválidos os actos do Estado que a violem: “A validade das leis e dos demais actos do Estado, da administração pública e do poder local depende da sua conformidade com a Constituição” (art. 226.° da CRA). A medida administrativa decretada pelo Presidente da República enquanto Titular do Poder Executivo, incidindo sobre a liberdade de reunião e de manifestação, na forma em que foi decretada, é inválida, não pode produzir quaisquer efeitos jurídicos sobre os cidadãos que se queiram reunir e manifestar na via pública, se a República de Angola for, de facto, um Estado democrático de direito.
V. A Lei de Protecção Civil também proíbe que o Presidente da República limite ou suspenda a liberdade de reunião e de manifestação dentro de uma declaração de calamidade pública
Para além da sobredita proibição constitucional, uma lei, a Lei de Protecção Civil, em sentido formal, lei do Parlamento da República de Angola, proíbe, expressa e inequivocamente, o Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, de tomar medidas administrativas que limitem ou suspendam direitos, liberdades e garantias dos cidadãos dentro de uma declaração da situação de calamidade pública.
Entre os seus números 1 e 6, o art. 4.° (Medidas) da Lei de Alteração à Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.° 14/20 de 22 de Maio, que deve passar a designar-se por Lei de Protecção Civil, o legislador estabelece um conjunto de medidas administrativas que podem ser tomadas pelo Presidente da República enquanto titular do Poder Executivo numa “declaração da situação de Catástrofe ou de Calamidade Pública”.
Todavia, no n.° 7 do mesmo art. 4.° da mesma Lei de Alteração à Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.° 14/20 de 22 de Maio, o legislador impõe que as medidas administrativas que o Presidente da República tome no quadro da declaração da situação de calamidade pública não podem, em caso algum, colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos: “As medidas tomadas pelo Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, ao abrigo da presente Lei [a Lei de Alteração à Lei de Bases da Protecção Civil/Lei de Protecção Civil] não podem, em caso algum, colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como o artigo 58.º da Constituição da República de Angola.”
Note, Vossa Excelência, que a regra jurídica supracitada, na sua primeira parte, determina que na declaração da situação de calamidade pública “[…] as medidas tomadas pelo Presidente da República […], em caso algum, podem colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos […]” (n.° 7 do art. 4.° da Lei de Alteração à Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.° 14/20 de 22 de de Maio). Qualquer limitação ou suspensão de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos coloca-os em causa, atinge-os de maneira parcial ou total.
A supracitada Lei da Protecção Civil reitera, na segunda parte da sobredita regra jurídica (n.° 7 do art. 4.°), embora não seja necessário, por força do princípio da supremacia da Constituição (art. 6.°/1 da CRA), que as medidas tomadas pelo Presidente da República no âmbito da declaração da situação de calamidade pública não podem colocar em causa o art. 58.° da CRA. O n.° 1 do art. 58.° CRA apenas autoriza que sejam limitados ou suspensos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos por via (dentro) das declarações dos estados de guerra, de sítio e de emergência.
A limitação (ou a suspensão) da liberdade de reunião e de manifestação por via da proibição do ajuntamento de mais de 5 pessoas na via pública “coloca em causa” essa liberdade. Com base nela, existem já autoridades administrativas a “indeferir” e a não “autorizar” o exercício da liberdade de reunião e de manifestação no dia 11 de Novembro.
VI. A medida administrativa através da qual Vossa Excelência limita (ou suspende) a liberdade de reunião e de manifestação constitui um “vício de violação de lei”
Diogo Freitas do Amaral define o “vício de violação de lei” como “o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicadas.O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objeto do ato” (Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, Coimbra, 2016, p. 345).
Eis a medida que Vossa Excelência decreta: “Não são permitidos ajuntamentos, de qualquer natureza, superiores a 5 (cinco) pessoas na via pública […]” (art. 29.°/1 do Decreto Presidencial n.° 276/20, de 23 de Outubro). E eis o que diz a Lei do Parlamento: “As medidas tomadas pelo Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, ao abrigo da presente Lei [a Lei da Alteração à Lei de Bases da Protecção Civil/Lei da Protecção Civil/Lei n.° 14/20 de 22 de Maio] não podem, em caso algum, colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como o artigo 58.º da Constituição da República de Angola.”
Doutrina Diogo Freitas do Amaral que “a Administração não pode prosseguir o interesse público de qualquer maneira, e muito menos de maneira arbitrária: tem de fazê-lo com observância de um certo número de princípios e de regras. Designadamente, e em especial, a Administração pública tem de prosseguir o interesse público em obediência à lei: é o que se chama o princípio da legalidade” (Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, Coimbra, 2016, p. 38).
A doutrina de Digo Freitas do Amaral encontra perfeito acolhimento na ordem jurídica angolana, na lei e na Constituição. O art. 3° do Decreto-Lei n.° 16-A/95 de 15 de Dezembro consagra o princípio da legalidade nos seguintes termos: “Na sua actuação os órgãos da Administração Pública devem observar estrictamente a lei e o direito nos limites e com os fins para que lhe forem conferidos poderes.” Por seu lado, a Lei Fundamental, a Constituição, o acto supremo no conjunto de todos os actos do Estado, impõe o princípio da legalidade nos dois artigos que a seguir são reproduzidos: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis” (art. 6.°/2 da CRA) e “A administração pública prossegue, nos termos da Constituição e da lei, o interesse público, devendo, no exercício da sua actividade, reger-se pelos princípios da […] legalidade […]” (art. 198.°/1 da CRA).
Através da medida administrativa, expressa no art. 29.°/1, segundo a qual “Não são permitidos ajuntamentos, de qualquer natureza, superiores a 5 (cinco) pessoas na via pública”, do Decreto Lei n.° 276/20 de 23 de Outubro, Vossa Excelência, para além de agredir a Constituição, também agride a Lei da Protecção Civil, que O proíbe de colocar em causa (limitar ou suspender), numa declaração de calamidade pública, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
VII. Não se pode justificar violações da Constituição e da Lei com o objectivo de defender o bem vida quando a Constituição e a lei claramente estabelecem regras, procedimentos, formalidades e formas que têm de ser respeitadas na actuação dos poderes públicos que vise a defesa da vida.
A protecção do direito à vida é uma obrigação que se impõe a todos os cidadãos e aos poderes públicos a todo o momento e, como um grande desafio, no contexto da pandemia em que a humanidade e Angola se encontram. Contudo, não há fundamento legal ou constitucional para o argumento segundo o qual, no contexto de uma pandemia, por estar em causa a defesa e proteção do bem vida, o Presidente da República ou quaisquer outros agentes públicos podem praticar ilegalidades e inconstitucionalidades para preservar a vida das pessoas. Uma actuação dos poderes públicos usando medidas arbitrárias e discricionárias configuraria um Estado-de-não-direito, um Estado-do-arbítrio, um Estado-da-prepotência, por descaracterizarem a natureza do Estado democrático de direito.
O respeito pelas regras e princípios jurídicos aplicáveis aos procedimentos, formalidade e formas da actuação dos poderes públicos, para a decretação e execução da situação de calamidade pública, em nada impedem a eficácia e eficiência das tarefas dos agentes públicos que estão obrigados pela Constituição e pela lei a prosseguir o interesse público da preservação da vida.
VIII. Mesmo que o Presidente da República dentro de uma declaração de estado de emergência limite ou suspenda direitos, liberdades e garantias dos cidadãos tem de fazê-lo obedecendo aos princípios constitucionais que servem de medida para o que pode e não pode fazer em termos de limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Mesmo que o Presidente da República limite ou suspenda a liberdade de reunião e de manifestação numa declaração de estado de guerra, numa declaração de estado de sítio ou numa declaração de emergência, a limitação tem de respeitar os seguintes princípios constitucionais: (1) princípio da necessidade (2) princípio da adequação (3) princípio da protecção do interesse público (4) princípio da proporcionalidade (5) princípio da limitação da extensão e da duração das acçōes a tomar (6) princípio da limitação dos meios utilizados ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da ordem constitucional (Ver art. 58.°/3 da CRA).
Ainda que Vossa Excelência decida usar a declaração de estado de emergência para limitar ou suspender a liberdade de reunião e de manifestação, esta decisão passa apenas no critério da forma constitucional própria para o efeito, mas, é preciso verificarmos se passará no teste da sua conformidade com os outros 6 (seis) critérios constitucionais supracitados.
IX. A responsabilidade civil do Estado por actos praticados por Vossa Excelência, na qualidade de Presidente da República.
A medida administrativa por Vossa Excelência decretada, pelo vício formal de que enferma, violando a Constituição e atentando contra o exercício da liberdade de reunião e de manifestação, constitui fundamento da obrigação de indemnização do Estado enquanto pessoa colectiva pelos danos causados aos cidadãos: “O Estado e outras pessoas colectivas públicas são solidária e civilmente responsáveis por acçōes e omissões praticadas pelos seus órgãos, respectivos titulares, agentes e funcionários, no exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa, ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros” (art. 75.°/1 da CRA). Todos os cidadãos são titulares da liberdade de reunião e de manifestação e detentores do direito e interesse legítimo de a defenderem perante os tribunais, contra a inibição da mesma por acto da administração do Estado.
Ademais, esta liberdade de reunião e de manifestação tem de estar disponível e só em situações excepcionais e dentro das formas (declaração de estado de sítio, declaração de estado de emergência e declaração de guerra), previstas na Constituição, pode ser limitada ou suspensa.
Vossa Excelência é titular de um cargo público, é Presidente da República, e decretou uma medida administrativa (no quadro das suas funções administrativas) que viola a liberdade de reunião e de manifestação e prejudicou (causou danos, pelo menos morais) a manifestantes no dia 24 de Outubro mas também a todos os demais cidadãos que queiram vir a exercê-la e que se encontram impedidos de fazê-lo pela medida administrativa através da qual proibiu o exercício da mesma.
X. O Ministério Público não pode acusar e os tribunais não podem condenar pessoas com base na desobediência a actos que sejam legal e constitucionalmente nulos.
Com perfeita ciência do princípio da separação de poderes, por o poder judicial não caber nos poderes que a Constituição atribui ao Presidente da República e por o Ministério Público, órgão auxiliar do poder judicial, dever ser autónomo, não deixo de partilhar com Vossa Excelência, aqui e agora, com a Vossa permissão, que nem o Ministério Público pode acusar os cidadãos da prática do crime de desobediência com base no art. 29.° do Decreto Presidencial n.° 276/20 de 23 de Outubro, que proibi o ajuntamento, de qualquer natureza, de mais de 5 (cinco) pessoas na via pública, e em consequência proíbe também o exercício da liberdade de reunião e de manifestação, nem os tribunais da República podem condená-los pelo crime de desobediência, por a medida administrativa ser, ao mesmo tempo, um acto nulo por força da lei e nulo por força da Constituição!
Excelência, entre os actos administrativos “São designadamente actos nulos: […] d) os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental” (art. 76.°/2 do Decreto-Lei n.°16-A/95 de 15 Dezembro). A medida administrativa que Vossa Excelência decretou, viciada, contaminada, na sua génese, pelo vício de violação de lei, atinge o conteúdo essencial da liberdade de reunião e de manifestação, tornando-se, por esta razão, legalmente um acto administrativo nulo.
A medida administrativa que limita ou suspende a liberdade de reunião e de manifestação na forma legal que Vossa Excelência usou (declaração da situação de calamidade pública) padece de vício formal, inconstitucional, e por esta razão é nula, constitucionalmente: “A validade das leis e dos demais actos do Estado, da administração pública e do poder local depende da sua conformidade com a Constituição” (art. 226.°/1 da CRA).
XI. Tenha coragem de institucionalizar o Estado democrático de direito
Com a Vossa permissão, peço a Vossa Excelência para institucionalizar de facto a democracia em Angola.
Tenha a coragem de ser diferente, Excelência!
Que Javé proteja a Vossa Casa!
Com elevada consideração e respeito pela Vossa pessoa,
Fernando Macedo
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE JOÃO LOURENÇO
Luanda, 11 de Novembro de 2020
Fonte: Club-k.net